O CONFLITO AGRÁRIO NA FORMAÇÃO DO ASSENTAMENTO SANTA CRUZ NO BICO PAPAGAIO NAS DÉCADAS DE 1970 E 1980
Inaugurando as postagens aqui deste canto digital, estamos trazendo o artigo do professor Edvan da Silva Bizerra. A obra refere-se ao trabalho apresentado na UFT por acasião de conclusão do curso de História.
___________________________________________
RESUMO
O presente artigo tem o objetivo de mostrar para todos que tenham intenção em
conhecer um pouco mais sobre a ocupação do Assentamento Santa Cruz. Este mesmo
assentamento está situado na famosa região do Bico do Papagaio, no extremo
Norte do estado do Tocantins, banhado pelos rios Araguaia e Tocantins, mais
precisamente as margens do rio Araguaia, na divisa entre os municípios de
Araguatins e Esperantina. A ocupação se deu em meio aos conflitos agrários que
aconteciam em muitas regiões do Brasil. O recorte temporal ao qual estamos nos referindo
se dá nas décadas de 1970 e 1980, quando muitos nordestinos se aventuram para
essa região em busca de terras “devolutas” para buscarem sua subsistência.
Outro fator que também mostraremos é a ligação da igreja católica com as
famílias sem terras. A igreja desempenhou um importante papel na
conscientização das famílias quanto a ocupação das terras. Neste contexto,
nosso trabalho será de ouvir as pessoas que viveram esses acontecimentos e
testemunharam os fatos, fatos esses que vão desde as palestras dadas pela
igreja católica, na pessoa do Pe. Josimo Morais Tavares; à ocupação das terras
pelas pessoas vindas de outros estados, principalmente do Nordeste; à expulsão
dos posseiros pelo fazendeiro “Belizário”; a morte de Pe. Josimo e a conquista
definitiva dos envolvidos.
INTRODUÇÃO
Este artigo propõe discutir os
modos de viver e a formação do assentamento Santa Cruz durante os anos 1970 e
1980. Nos valemos das fontes orais para realizar esta pesquisa. Nesta
perspectiva, Thompson (2002, p. 25) mostra que “a fronteira do mundo acadêmico
já não é mais os volumes tão manuseados do velho catalogo bibliográfico. Os
historiadores orais podem pensar agora como se eles próprios fossem editores: imaginar
qual a evidencia de que precisam ir procura – lá e obter – lá”.
Este assentamento é mais um de
muitos que surgiram aqui na região do Bico do Papagaio nesse recorte de tempo
citado acima. Não existem documentos que comprovem ao certo quando se deu a
chegada dos primeiros moradores nesse dito assentamento mais as informações que
adquirimos nos relatos dos primeiros moradores é que isso se deu no início da
década de 1970.
Esta pesquisa foi realizada
basicamente por relatos dos moradores que ainda estão vivos para contar como
eles viram os fatos se desenvolverem. Desta forma, procurarei unir as
informações dos primeiros moradores desta localidade, somadas a quem impôs
resistência a eles, no caso o fazendeiro chamado “Belizário¹” e a importância da igreja
católica junto aos camponeses que requeriam – por direito – o seu pedaço de
terra para tirar o sustento para si e para suas famílias. Destas três partes
nasceu a minha pesquisa e meu objeto de estudo.
_____________________
¹ Belizário é o nome do fazendeiro que se dizia ter
os títulos de posse das terras da Fazenda Santa Cruz. Com essa argumentação,
dizia ser dono também das terras ao fundo dessa fazendo, terras estas que fazem
parte hoje do atual Assentamento Santa Cruz.
____________________________
DESENVOLVIMENTO
O Bico do Papagaio² situa-se em uma região muito
distante dos grandes centros urbanos, os conflitos agrários existentes aqui nas
décadas de 1970 e 1980, ficaram conhecidos em todo o país através da imprensa
que ás noticiou, fazendo com que esses ganhassem grandes dimensões e ficassem
conhecidos em todo território nacional. Hoje há a necessidade de aprofundar
mais as investigações a respeito do que aconteceu no extremo norte do estado de
Goiás na época, hoje Tocantins, mais precisamente no município de Esperantina,
antes município de São Sebastião do Tocantins, divisa com o município de
Araguatins.
A disputa por terras não só
acontecia no Assentamento Santa Cruz³, mas em muitos lugares no estado do Pará, no Maranhão e em todo o
Brasil. Esses fatos ganharam relevância ainda mais com a Guerrilha do Araguaia
e o assassinato do Pe. Josimo, que morava em são Sebastiao – TO, antes Goiás, e
foi assassinado em Imperatriz – MA. Alguns autores tentam mostra quais seriam
as possíveis causas desses conflitos e perseguições.
Quando? Início da década de 1970.
Muitos acontecimentos haviam ocorridos para encorajar as pessoas a irem em
busca de um pedaço de terra para trabalharem e sobreviverem, em especial os
povos nordestinos, que se dirigiam as terras do Norte em busca de melhor sorte
na vida. O que fizeram essas famílias saírem de uma região e se aventurarem em
outra? A política do governo federal com a modernização da agricultura, que fez
com que muitas famílias saíssem de onde viviam em seus pequenos terrenos de
subsistência, pois não tinham condições de competir com empresários, muito
menos tinham documentação dessas terras para garantir sua posse; a seca; a
quantidade de terras livres para os povos viverem e trabalharem etc.
Um outro fator que levou a essa
luta pela terra foi a política do governo federal. Antes do Regime Militar, o
Presidente João Goulart havia tentado realizar uma reforma agraria, mas foi obrigado deixar o cargo de presidente por conta dos militares que tomaram o poder e governaram por 21 anos.
Após o Golpe militar de 1964, o
primeiro processo de luta pela terra, denominado Encruzilhada do Natalino,
ocorreu no Rio Grande do Sul, no município de Ronda Alta. Tendo se iniciado em
março de 1981, esse conflito começou a ser solucionado somente em setembro de
1983, quando a CNBB comprou 100 hectares de terra e destinou – os ao
assentamento de 207 famílias remanescentes. (FERNANDES, 2007, P. 46 e 47).
______________________________
2 A microrregião do Bico do Papagaio é uma das microrregiões do estado brasileiro do Tocantins. Sua população foi estimada em 2015 pelo IBGE em 222.548 habitantes e está dividida em 25 municípios. Possui uma área total de 15.767,856 km². Os 25 Municípios que compõe a Microrregião são: Ananás, Angico, Araguatins, Augustinópolis, Axixá do Tocantins, Buriti, Carrasco Bonito, Darcinópolis, Esperantina, Itaguatins, Luzinópolis, Maurilândia, do Tocantins, Nazaré, Praia Norte, Riachinho, Sampaio, Santa Terezinha do Tocantins, São Bento do Tocantins, São Miguel do Tocantins, São Sebastião do Tocantins, Sítio Novo do Tocantins e Tocantinópolis.
³ Nome dado hoje as terras que pertenciam ao fazendeiro Belizário e foram desapropriadas para a reforma agrária em 1987, dando origem a este assentamento.
_____________________________
Ou seja, esses movimentos
organizados vieram muito depois das chamadas invasões de terras que aconteciam
por estas regiões. Esses e muitos outros acontecimentos fizeram com que as
pessoas buscassem um pedaço de terra para plantar e colher. Além disso, ainda
temos, a entrada da igreja católica e de partidos de esquerda na defesa das
famílias que não dispunham de um pedaço de terra.
...com o apoio de líderes de
partidos políticos esquerdistas e de alguns líderes do clero. A presença desses
dois segmentos sociais (ou entidades) fortemente organizado e com significativo
poder de articulação – a igreja, representada pelos religiosos da Teologia da
Libertação, e partidos políticos, em especial os de esquerda – contribuiu
decisivamente para a formação do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem – terra
(MST). No momento da organização do MST, já havia uma interação entre essa
parte da igreja (que criou a Comissão Pastoral da Terra – CPT) e vários setores
da esquerda no Brasil (FERNANDES, 2007, P. 44).
Esses foram um dos muitos motivos
que fizeram com que as pessoas se deslocassem para onde existisse terras “devolutas”
da união para trabalharem. Ouvindo relatos das pessoas que se aventuraram por
esses lados, fica mais fácil de entender como se deu as primeiras ocupações do
Assentamento Santa Cruz, nosso objeto de estudo. Para isso, me baseio na
história oral para realizar esta pesquisa, visto que muito pouco se sabe sobre
esse assentamento em si. Me deparei então a ouvir as pessoas que participaram
desde o início da ocupação do P.A Santa Cruz.
A história oral não é necessariamente um
instrumento de mudança; isso depende do espirito com que seja utilizada. Não
obstante, a história oral pode certamente ser um meio de transformar tanto
conteúdo, quanto a finalidade da história. Pode ser utilizada para alterar o
enfoque da própria história e revelar novos campos de investigação; pode
derrubar barreiras que existem entre professores e alunos, entre geração, entre instruções educacionais e o mundo exterior; e na
produção da história – seja em livros, museus, radio ou cinema – pode devolver
as pessoas que fizeram e vivenciaram a história um lugar fundamental, mediante
suas próprias palavras (THOMPSON,
2002, p.
22).
São estas fundamentações que
sustentaram nossa memória oral. E são tantas as pessoas que participaram desde
o início dessa caminhada em prol da posse da terra no nosso objeto de pesquisa.
Por onde andamos encontramos informações de pessoas que dizem – Quem conhece
bem essa história desde o começo é o fulano. – O fulano de tal também conhece. –
Meu pai também sabe do começo da história.
ASSENTAMENTO SANTA CRUZ
As pessoas que ainda vivem no
Assentamento Santa Cruz estão bem vivas para contar como tudo aconteceu. Seu
Eugênio conta como ficou sabendo destas terras e os motivos que fizeram este e
sua família viram se aventurar por aqui.
Lá no Maranhão nos vivia na terra
alea, nos era garoto e nós vem de lá pra cá. um vei falou pra papai: - rapaz aí
tem terra Nacional aí pra baixo, no Goiás. Chamavam Goiás. Papai perguntou –
rapaz aonde é que fica essa terra? – no Goiá. Chamavam Goiás. – E esse Goiás
moço onde é que fica? – não é... tem uns rios grandes. Ele falou assim.-Qual é
o rio primeiro? – Tem o Tocantins e o Araguaia, e ele fica numa ilha (Eugênio Pereira
de Sousa, 65 anos, entrevista realizada 03/06/2015).
As décadas de 1950 e 1960
presenciaram um grande crescimento econômico e social na vida das pessoas. Soma
– se a isso a construção de Brasília e a abertura das rodovias federais,
facilitaram o acesso a esta região. Com o país vivendo uma nova fase econômica,
por que não procurar melhorias nas condições de viver em outro lugar? O lugar
era o antigo norte goiano, hoje atual Bico do Papagaio.
Outro fato marcante que ajudou
esta região a ficar conhecida nacionalmente e mundialmente foi a Guerrilha do
Araguaia. Esse dito Local que seu Eugênio relata na entrevista foi palco de
visita dos soldados do exército em busca dos “guerrilheiros” da Guerrilha do
Araguaia.
O exército atacou simultaneamente
os destacamentos A e C. Uns dez dias depois atacou o Destacamento B e também o
local da CM. As tropas ficaram na Transamazônica e nas cidades de Xambioá,
Marabá, Araguatins, Araguanã, e nos povoados da Palestina, Brejo Grande, São
Geraldo, Santa Cruz e outros. Não foi muito grande o número de soldados que
entrou na área onde s achava os PAs (Guerrilha do Araguaia, 1996, p. 20, vários
autores).
Logo após tomaram conhecimento
das terras “devolutas” dessa região, decidiram vir para estas bandas. Vale
ressaltar que a família do seu Eugênio já tinha vindo de outro estado, o Piauí.
Seu Eugênio conta que antes de chegar no nosso local de pesquisa, fixaram
residência primeiro no município do Axixá do Tocantins4, por volta de 1958.
Veja o mapa de alguns dos municípios
da Região do Bico do Papagaio. O Assentamento ao qual estamos nos referindo
fica noroeste, na divisa dos municípios de Esperantina e Araguatins, as margens
do Rio Araguaia.
__________________________
4 Axixá do Tocantins é mais um dos municípios do Bico
do Papagaio. Este já faz divisa com Araguatins e fica mais ao Norte dos
municípios do Bico. Esperantina fica a Noroeste do Bico do Papagaio.
______________
Por desentendimento entre
famílias que haviam acompanhado a família de seu Eugênio, estes tiveram de
procurar novas terras para plantar e colher. É aí que estes chegam ao nosso
destino.
...nós descemos pra cá em 69. 69
nós saímos ali do Axixá pra cá. Aí quando cheguemo aqui fumo se aboletar aqui.
Aí ajuntô gente. [...] pois tu acredita como esses tempos que nos passamos
aqui...cheguemos em 69...quando foi em 75 o vagabundo botou nós pra saí daqui
tinha 200 habitantes aqui mais nós. Só comercio tinha 16 comerciante aí mais
nós. [...] foi o dotor Belizário que expulsou nós. O dotor Belizário que era o
fazendeiro né? Ele fez um documento falso dizendo que tinha comprado da
prencesa Isabel né, mintino, né. Quando nós levamo no 85, lá foi
aprovado que ele não tinha comprado nada, aí vei a historia pra ele se saí
daqui. Tiramo, aí nos ajuntemo, tiremo todo mundo aqui. Tinha uns abuletado bem
aqui no haviamento nosso, tinha outro na Marina6 e outro
no São Francisco7. Tinha 300 homens deles aí, mas nós tiremo tudim,
no amado sussego né, cheguemo, conversemo com eles, cumo companheiro cum outro
e vocês saí daqui que aqui não pertence a vocês. É melhor vocês sai que nos
sabe que vocês também são pais de família, mais aqui não da de vocês tocar esse
serviço, porque o direito é nosso, de vocês também, se quiser morar pra
trabaiar, tudo bem, mas pa isbravar, pra deixar nós fora, num dá. Aí vei a orde
do 8 e eles sairo tudim. (Eugênio Pereira de Sousa, 65 anos, entrevista
realizada 03/06/2015).
Veja o que diz outra autora sobre
como os fazendeiros faziam para se apoderar das terras. Le Breton fez um
importante estudo sobre a pessoa de Pe. Josimo e as lutas das pessoas pela
terra na região do Bico do Papagaio.
A grilagem é uma arte antiga no Brasil, e seus
praticantes desenvolveram grande repertorio de truques, objetivo é obter
escritura, a qualquer preço, uma coisa facilitado pelo fato de ninguém ter uma
noção bem clara da situação da terra. A PRIMEIRA divisão do novo mundo foi
feita pelo papa em 1494, quando, através do Tratado de Tordesilhas, quando ele
riscou uma linha no mapa da américa Sul, toda a terra a oeste para Espanha e
toda a terras a leste para Portugal. [...] no contexto de uma titulação de
terra tão caótica, o caminho estava aberto para toda e qualquer pessoa inescrupulosa
que quisesse enriquecer, juízes, médicos, arquitetos, homens de negócios e
autoridades locais, seguiram – se um após o outro na contratação nos serviços
de especialistas em falsificação de documentos. Era incrivelmente fácil
conseguir certidões em branco nos cartórios de registros de propriedades e
preenchida a gosto.
Com um traço de caneta, propriedades podiam ser ampliadas e mapas redesenhados. Documentos podiam ser artificialmente envelhecidos para comprovar uma apropriação mais antiga (Le Breton,2000, p. 55).
_________________________
5 Nome dado por alguns moradores dessa região do Bico
do Papagaio a cidade de Marabá – PA, anos atrás.
6 Lote vizinho onde seu Eugênio e seus companheiros
estavam vivendo.
7 São Francisco era o principal povoado existente
naquela época nessa região. Para se ter uma ideia, nem a atual cidade de
Esperantina, nem o Povoado Centro do Zé mulato (hoje Vila Tocantins) existiam.
Era uma espécie de cidade na época.
____________________________
Segundo os entrevistados, o
fazendeiro que havia tentado expulsar eles moravam junto deles no Campestre8, e que depois que expulsaram os
pistoleiros, ele também se mudou para um outro assentamento vizinho. No relato,
as pessoas contam que o fazendeiro chamado Belizário, mesmo aceitando, num
primeiro momento a ordem vindo do 8 para deixar os “assentados” em paz,
continuou a perturbar e procurar meios para expulsar os colonos dessa
localidade. Para isso, seu Bento, outro morador conta que o fazendeiro fez o
seguinte:
Ele foi por de tráz e lá fez uma grojeta lá pelo
pessoal do 8 e vieram decretado aqui. O doutor Domingo que era o juiz aqui de
Tocantinópolis. Não rapaz aqui a terra ai o home ... ele não tem o título
definitivo, mas tem título de ocupação. Todo mundo acha que foi uma coisa
comprado. Foi comprado ne. Porque nós foi lá, foi 12 homem foi lá. Ele falou –
não vocês podem ficar tranquilo, lá é de vocês mesmo. Na mesma hora ele vem
decretado aqui dizer que a terra era do homem, que o homem tinha o documento de
ocupação. Antigamente num tinha, agora já tem! Aí os menino... tinha uns pessoa
que enxergava a vista um pouco, foi oiar tudo novo, documento tudo novo. Ele
fez depois daquela vinda que nós tinha ido lá, que ele sobe que a gente tinha
ido lá e crio esse documento e levo lá pra eles vê que a terra era dele e tudo
bem aí ele vei com aquele h. (Bento Pereira da Silva, 64 anos, entrevista no
dia 02/07/2015).
Desta vez o fazendeiro conseguiu
expulsar os moradores do Campestre pela 1ª vez. As famílias saíram e muitos se
espalharam pelo Pará, outros se fixaram em Araguatins, que fica rio acima, ou
seja, se dispersaram em busca de lugar para morar. O ano? 1975. Mesmo assim,
alguns chefes de famílias não deixaram de visitar as terras da Santa Cruz,
visto que haviam deixado para traz muitas roças de arroz e mandioca.
Uma outra fala de outra pessoa
entrevistada reforça bem a fala de seu Bento. Esta outra entrevistada nos conta
da seguinte forma:
Vieram tocar fogo nas casas. As casas estavam
feitas de novo, era rui de pegar fogo. Aí eles botavam os menino pra jogar
querosene pra tocar fogo. Ainda cortaram até um pra obrigar...pra obrigar tocar
fogo nas casas do Campestre. Aí os povo tudim das casas deixaram só a muier, aí eles vieram de noite. Aí uns que queria ser corajoso ficou dentro da trincheira aí eles passaram fogo ao redor. Ainda bem que não matou. Aí as casas ficaram só as casas. Ficou dominado só por eles mesmos. Teve gente que foi pro Brejo Grande. Eles fizeram despejo de gente atá pra Itupiranga, Apinajé, São João do Araguaia, Marabá, Porto da Balsa, Araguatins, Palestina. Pra tudo isso foi feito despejo de gente. Quando eles tocaram fogo nas casas, as mulheres saíram, eles pegavam as galinhas levavam pra Sede9 (Nelsilha Ribeiro Rodrigues, 64 anos, entrevistada em 20/10/2015)
__________________________
8 Localidade da primeira sede de povoamento do
Assentamento Santa Cruz, as margens do Rio Araguaia. Até hoje conta com muitas
famílias morando ali. Muitas casas dos assentados foram construídas nessa
localidade.
________________________
Realmente as pessoas deste
assentamento passaram por muitas dificuldades para poder conseguir o direito
definitivo dessas terras. Outro morador entrevistado que fez parte da segunda
geração dos moradores que vieram se assentar na Santa Cruz depois que o
fazendeiro havia expulsado os moradores na primeira fase da ocupação é o senhor
Raimundo Mota, mais conhecido como Raimundo Cambota, que chegou na Santa Cruz
por volta de 1986, na época a terra ainda estava sobe um clima de guerra. Este
também conta muito bem como se deu a briga entre o fazendeiro Belizário e as
famílias que moravam no Campestre.
É bom que se diga, entre as primeiras famílias que chegaram aqui no início
da década de 1970 e as que chegaram em meados da década de 80, muitos fatos
marcantes aconteceram. Como foi relado por alguns, muitas famílias foram
obrigadas a deixarem o Setor Campestre. Essas famílias que saíram, muitas
retornaram no início da década de 80, quando os trabalhos da igreja católica se
intensificaram, com esclarecimentos, em reuniões realizadas em muitos povoados.
Desta forma, muitas famílias entraram depois disso, mais precisamente em 86,
quando houve a “invasão” por um número muito grande de famílias, fixando
moradia em três diferentes locais: Quatro Bocas10, Esquinão11 e Campestre.
Quando ele comprou essa terra
aqui, aí ele queria a área todinha aqui...aí mandou demarcar... inclusive o
conflito começou purisso, porque o povo naquela época não queria entrar pro
pasto, queria entrar pra mata e ele queria a mata aqui porque tinha comprado lá. Aí o conflito começou por isso (Raimundo Pereira da Mota, 49 aos, entrevista realizada em 01/07/2015).
______________________________
9 Sede era mais um local onde muitas famílias viviam.
Esta localidade chamada Sede no passado, deu lugar a mais um assentamento,
muito próximo ao Assentamento Santa Cruz. Este recebeu o nome de Retiro Santa
Cruz II, e realmente virou Sede de um assentamento.
10 Núcleo de assentados. Um conjunto de casas
populares feitas pelo INCRA para as famílias morarem. Esta fica a 8 Km da TO
201.
11 Núcleo de assentados. Este fica logo depois das
Quatro Bocas, também um conjunto de casas semelhantes as anteriores. Conta com
um número muito semelhante de famílias. Estes dois setores, mais o Campestre, formam
o Assentamento Santa Cruz.
____________________________
Mais à frente em outra parte da entrevista ele continua relatando como
ocorreu a ocupação destas terras pelo tal fazendeiro Belizário.
Essa terra aqui ela é uma terra “devoluta”,
aí esse vei que era o dono dessa fazenda, ele até pobre era, pelo que me
contaram, que era o seu “Belizário” aí ele ganhou um dinheiro, eu não sei se
foi no garimpo ou se foi em jogo. Eu sei que ele ganhou um dinheiro, aí veio e
comprou essa terra. Quando ele comprou essa terra com o dinheiro que ele ganhou
lá. Quando ele comprou essa terra, ele foi embora pra Brasília, por lá ele
comprou uma patente de general. Quando ele comprou essa terra aqui, aí ele
queria a área todinha. Aí mandou demarcar (Raimundo Pereira da Mota, 49 anos,
entrevista realizada em 01/07/2015).
Quando os depoentes se referem
comprado lá, na verdade estão se referindo à frente da fazenda do fazendeiro
Belizário. Esta frente estava localizada na estrada que vinha de Augustinópolis
e ia até o povoado do São Francisco¹², na época município de são Sebastião e hoje município de Esperantina,
estrada hoje que conhecemos como TO 201.
Outro entrevistado que relata
como fazia para fugir do cerco do fazendeiro é seu Raimundo Alves Taveira. Ele
nos conta que após a primeira expulsão que os moradores tiveram, onde muitos
receberam uma pequena indenização para desapropriar as terras, ele recusou esta
indenização e apenas se afastou mais um pouco de onde o fazendeiro dizia que
eram suas terras.
Quando ele (o fazendeiro) botou
nos pra correr a primeira vez, eu não saí não, não quis esse dinheirinho não,
queria mais era ficar na terra. Eu só fastei mais um pouco meu pique, pra
desviar da terra que ele dizia que era dele. Ai comecei trabaiar de novo. Fiz
um sitio com tudo que era prantação, tinha mais de 100 pes de banana, muita
laranja, a coisa mais bonita do mundo. Pois depois de cinco ano o homem não
tornou cercar minha terra de novo, disse que tudo ali era dele. Eu que
procurasse outro lugar pra viver. Aí eu afastei mais pra cá, que é onde estamo
aqui. Até quando o governo entrou e decidiu cortar de vez pra nois (Raimundo
Alves Taveira, 74 anos, entrevista realizada em 20/10/2015).
________________________
¹² São
Francisco é um povoado que fica próximo à cidade de Esperantina. Na época
Esperantina não existia.
_____________________
Naquela época era tão perigoso
tentar conquistar um pedaço de terra que, muitos contam que tentar plantar
capim era muito perigoso. Em se falando em conflitos, há de se destacar aqui a
questão da disparidade entre o embate dos poderosos que possuíam recursos em
busca de seus interesses e aqueles que estavam buscando um espaço para
sobrevivência, muitas vezes sozinhos e sem recursos.
Naquele tempo a ordem era para
não plantar nem capim, era só pra prantar mesmo arroz, feijão, mandioca, milho,
essas coisas. Ninguém não falava em plantar capim. Capim quem plantava era os
latifundiários. Então foi assim, ai quando eles saiam que nos viemos pra cá,
que fizemo as roça, aí nos prantemos milho, mandioca, arroz, fizemo as roça já
maior, ai deu sustentação até pro outros. Já no outro ano todo mundo já foi e
brocou, já em 1987” (Bento Pereira da Silva, 64 anos, entrevista no dia
02/07/2015).
Nessa época, essas pessoas
encontraram um advogado que falasse a seu favor. Era a igreja católica na
pessoa do padre Josimo Morais Tavares. Ele era presidente da CPT (Comissão
Pastoral da Terra) e junto de outras lideranças religiosas, começaram a tentar
intermediar em favor das famílias que lutavam por um pedaço de terra para
sobreviver.
A CPT surge de fatores combativos da igreja
católica e, apoiadas por “paroquias de periferias” das cidades e das
comunidades rurais, passou a dar assistência aos camponeses durante o Regime
Militar. Inicialmente sua atuação se focalizava mais naquelas lutas do Norte e
Centro – Oeste, depois com o acirramento dos conflitos sociais pela terra em
todo o país, vai assumindo uma dinâmica social e territorial de dimensão nacional,
num sentido de especializar seu campo de orientação e formação dos camponeses
evolvidos em áreas de conflitos (SILVA, 2003, p.79).
A Comissão Pastoral da Terra,
criada em 1975, tinha o objetivo de apoiar os camponeses em suas lutas. Isso
foi o fator fundamental para as pessoas que estavam nessa situação ganhassem
suas terras. A Comissão Pastoral da Terra e a igreja até hoje são muito bem
vistas nessa região por estas ações. Esse apoio dado pela igreja fica claro na
fala dos depoentes. Todos falam muito bem do Pe. Josimo e de suas companheiras
freiras que sempre o acompanhavam.
Se devemos alguma coisa aqui, esta divida é ao
Padre Josimo. Aquele homem veio do céu para no ajudar. Sem aquele homem nos não
tinha conseguido essas terra não moço. A igreja católica fez muito por nós. Se
não fosse ela não tinha conseguido não. Foi o senhor Jesus cristo que botou Josimo na nossa causa. (Raimundo Alves Taveira,74 anos, entrevista realizada em 20/10/2015).
É fato comprovado a participação da igreja católica a esta causa. O envolvimento desta foi de tão
importância para as pessoas da região do Bico do Papagaio que levou a morte de
Josimo Morais Tavares, fruto do ódio que este despertava nos grandes
latifundiários.
Ao abraçar as causas dos trabalhadores rurais, ele
se tornou um símbolo de resistência e um foco de esperança. Quando as pessoas
eram expulsas e espancadas, tinham suas casas queimadas e suas roupas roubadas
o Padre Josimo fazia? Ele os encorajava a voltar a terra, a resistir a todo
preço e não se desesperar. Era um espirito livre, uma torre forte, mais para os
fazendeiros era insuportável (LE BRETON, 2000,
p.111).
De tanto lutar ao lado dos
camponeses, Padre Josimo despertou o ódio dos fazendeiros que tinham terras
nessa região. Esse ódio o tirou a vida no dia 10 de maio de 1986. Sua morte
chamou a tenção das autoridades de todo o pais, fazendo com que muitos
assentamentos que estavam em conflitos agrários fossem passados definitivo para
as pessoas envolvidas. Foi o caso do nosso Assentamento Santa Cruz, que tão
logo os seus moradores viriam a ganhar os direitos de posse de suas
propriedades.
Um outro legado das lutas
travadas pela igreja foi a criação dos Sindicatos dos Trabalhadores Rurais. A
partir desses sindicatos, as pessoas puderam se unir para ganhar força contra
os fazendeiros e até mesmo contra o governo. Este documento, encontrada na sede
do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Esperantina, mostra a documento
assinado pelo ministro do Trabalho, criando o Sindicato dos Trabalhadores
Rurais de São Sebastiao do Tocantins, estado de Goiás em 1982. São Sebastiao
porque na época não existia o município de Esperantina. Este mesmo sindicato
foi transferido para Vila Tocantins, Esperantina – TO, quando esta ganha sua
emancipação.
Com a criação deste sindicato
nesta data, as coisas começaram a mudar na vida de muitas famílias camponesas.
Esse sindicato, junto a mobilização da igreja – nas pessoas Nicola, Pe. Josimo
e as freiras Mada e Bia – teve papel fundamental para a desapropriação ou reconhecimento pelo INCRA, por volta de 1987 da
então Fazenda Santa Cruz, Para Assentamento Santa Cruz. Com o passar dos anos,
não somente este assentamento, mas muitos outros conseguiram ser legalizados.
Um depoimento importante que
mostra bem esse início de final feliz é a entrevista com José Felipe. Esta
conta mais detalhes da época em que as coisas ficaram mais calmas para os “posseiros”.
Zé Felipe, como é conhecido, relata que após as primeiras lutas vividas pelas
primeiras pessoas que se aventuraram por essas terras – seu Eugênio, Nelsita,
Raimundo Taveira, entre outros – no início da década de 1970, as coisas se
acalmaram em meados da década de 1980, quando foram criados os Sindicados e as
Associações. Esta conta que entrou para as terras da Santa Cruz em 1986. Ele
cita 86 porque foi a época que a igreja, os sindicatos e as associações, após
os muitos casos de mortes e agressões nessa região, noticiados na imprensa
nacional, somados a morte de Pe. Josimo, começam a vencer a batalha contra os
fazendeiros em prol das famílias sem – terra.
Eu entrei em agosto de 1986. O
pessoal já tinha entrada já. Aí houve esse processo de desapropriação, aí ficou
naquele balanço né? Vai desapropriar não vai? Porque o sindicato, as
organização, o INCRA entra com esse processo de desapropriação. Mas aí sempre
tem aquela brecha pro fazendeiro recorrer né, que pode. Aí levou esse tempão
todim! Isso em 86. Quando foi em 89... certo quando o INCRA veio reconhecer foi
em 1989. 89 foi que o INCRA veio reconhecer. Houve primeiro uma demarcação, aí
botaram poste de madeira, mas também não valeu ainda... Mas depois veio o outro
mesmo certo né, que foi a desapropriação, que foi enfiado o de cimento13. E aí
foi assim essa grande luta de lá pra cá. O primeiro documento que eu tenho, já
foi questão do que veio pra dentro depois da parcela, que foi reconhecido pelo
INCRA, que foi um... uma carta de anuência, que foi o primeiro dinheiro que
entrou, que hoje eles chamam como fomento (José Felipe de oliveira Filho, 63
anos. Entrevista realizado em 07/01/2016).
Esse foi realmente o primeiro
documento dado pelo INCRA. Este documento mostra que a partir daquele momento,
o assentamento Santa Cruz estava legalizado. Os batalhadores haviam vencido.
Uns lutando mais do que outros, mas haviam vencido a luta. Veja abaixo uma
imagem deste documento:
_________________________
13 Pequenos postes de cimento que o INCRA usa enfiado no chão para limitar a divisa de um lote a outro.
___________________________________
Depois desta data a justiça havia
dado ganho de causa definitiva para as famílias merecedoras. José Felipe ocupou
a presidência da Associação do Assentamento Santa Cruz por 6 anos, de 2005 a
2011. Este mesmo assentamento conta com 112 famílias assentadas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Foram muitas os obstáculos das
famílias para vencer essa luta contra o fazendeiro que queria cercar estas
terras do Assentamento Santa Cruz. Nessas lutas travadas muitos sem-terra
perderiam a vida defendendo um pedaço de terra para sua família. Como vimos por
parte dos relatos das pessoas que viram tudo acontecer, muitos deles foram
obrigados a saí ou morriam. Muitos saiam mais encontravam apoio na igreja
católica, na pessoa do Pe. Josimo, na comissão Pastoral da Terra e de muitas
freiras que estavam sempre prontas a enfrentar essa luta junto com eles. Nessas
lutas que estavam sendo travadas, muitos anos foram se passando, desde a
chegada dos primeiros moradores no final da década de 60 até meados da década
de 80 do século passado. Foram anos e anos de resistência, onde pouco a pouco
os direitos vinham sendo conquistados.
Este assentamento foi o primeiro
do Bico do Papagaio a ter a sua situação legalizada. Este mesmo assentamento
beneficia 112 famílias. Depois deste vieram muitos outros. Hoje a região conta
com uma infinidade de assentamentos, nessa região, beneficiando muitas famílias
que antes não tinham um pedaço de terra para trabalharem.
Este fazendeiro que muito aparece
no artigo, “Belizário”, em conversas com os depoentes, não encontrei nada mais
desse homem, a não ser o que os assentados me contaram. Falam que ele morreu
por volta de 1985. Sua esposa cansada de tantas “brigas e fuxicos”, não pensou
duas vezes, vendeu a terra para um tal de “Tonim”, um aventureiro que já sabia
que o governo tinha intensão de comprar pra fins de reforma agraria, então
tentou ganhar um bom dinheiro do governo vendendo bem mais caro.
O saldo que ficou foi o prazer de
terem lutado e conseguido. Mas para isso muitos não tiveram a coragem de ficar
até o fim, na queima de casas do Campestre, muitos foram embora e não voltaram
mais. Um padre morto, por conta deste e de outros conflitos, em defesa da posse
da terra. Fica também a lição de que para conseguir as coisas nada é fácil.
Hoje o assentamento está consolidado. Muitas famílias desfrutam de um pedaço de
terra para trabalhar e viver com mais dignidade. Muitos não conhecem nem a
metade do processo de titularização destes lotes.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BLOCH, Marc Leopoldo Benjamim; Apologia da História. Rio de
janeiro: Jorge Zahar. Ed. 2001
BRETON, Brinka Le. Todas Sabiam: A Morte Anunciada de
Padre Josimo - Brinka Le Breton, São Paulo. Editora Loyola 2ª ed. 2000.
FERNANDES, Cludemar Alves. (RE) Tratos Discursivos do Sem –
Terra.
Claudemar Alves Fernandes – Uberlândia, EDUFU, 2007.
HALBWACHS, M. A Memória Coletiva. São Paulo:
Vértice; Revista Editora dos Tribunais, 1990.
MANCANO, Bernardo Fernandes; SERVOLO, Leonilde de medeiros; PAULILO,
Maria Ignez. (orgs.). Lutas Camponesas Contemporâneas: condições, dilemas e conquistas. São
Paulo: Editora UNESP; Brasília, DF: Núcleo de Estudos Agrários e
Desenvolvimento Rural, 2009.
OLIVEIRA, Oriovaldo Umbelino de; MARQUES, Marta Inez Medeiros. (Orgs). O Campo
no
Século XXI: território de vida, de luta e de construção da justiça social.
São Paulo: Editora Casa Amarela e editora paz e Terra, 2004.
PANINI,
Carmela. Reforma Agrária Dentro e Fora da Lei: 500 anos de história
inacabada.
São
Paulo: Paulinas, 1990.
TAVARES,
Morais. VOLTA JOSIMO! Celebração dos 20 anos do martírio do padre
Josimo.
Poesias e
tríduo de preparação à semana da terra Pe. Josimo. Morais Tavares. Editora:
Ética.
Imperatriz,
MA, 2006.
THOMPSON,
Paul. A Voz do Passado: história oral. 2. ed. Tradução de Lólio
Lourenço de
Oliveira.
Rio de Janeiro: Paz e Terra.
Comentários
Postar um comentário