O CONFLITO AGRÁRIO NA FORMAÇÃO DO ASSENTAMENTO SANTA CRUZ NO BICO PAPAGAIO NAS DÉCADAS DE 1970 E 1980


Inaugurando as postagens aqui deste canto digital, estamos trazendo o artigo do professor Edvan da Silva Bizerra. A obra refere-se ao trabalho apresentado na UFT por acasião de conclusão do curso de História.
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RESUMO
O presente artigo tem o objetivo de mostrar para todos que tenham intenção em conhecer um pouco mais sobre a ocupação do Assentamento Santa Cruz. Este mesmo assentamento está situado na famosa região do Bico do Papagaio, no extremo Norte do estado do Tocantins, banhado pelos rios Araguaia e Tocantins, mais precisamente as margens do rio Araguaia, na divisa entre os municípios de Araguatins e Esperantina. A ocupação se deu em meio aos conflitos agrários que aconteciam em muitas regiões do Brasil. O recorte temporal ao qual estamos nos referindo se dá nas décadas de 1970 e 1980, quando muitos nordestinos se aventuram para essa região em busca de terras “devolutas” para buscarem sua subsistência. Outro fator que também mostraremos é a ligação da igreja católica com as famílias sem terras. A igreja desempenhou um importante papel na conscientização das famílias quanto a ocupação das terras. Neste contexto, nosso trabalho será de ouvir as pessoas que viveram esses acontecimentos e testemunharam os fatos, fatos esses que vão desde as palestras dadas pela igreja católica, na pessoa do Pe. Josimo Morais Tavares; à ocupação das terras pelas pessoas vindas de outros estados, principalmente do Nordeste; à expulsão dos posseiros pelo fazendeiro “Belizário”; a morte de Pe. Josimo e a conquista definitiva dos envolvidos.


INTRODUÇÃO

Este artigo propõe discutir os modos de viver e a formação do assentamento Santa Cruz durante os anos 1970 e 1980. Nos valemos das fontes orais para realizar esta pesquisa. Nesta perspectiva, Thompson (2002, p. 25) mostra que “a fronteira do mundo acadêmico já não é mais os volumes tão manuseados do velho catalogo bibliográfico. Os historiadores orais podem pensar agora como se eles próprios fossem editores: imaginar qual a evidencia de que precisam ir procura – lá e obter – lá”.

Este assentamento é mais um de muitos que surgiram aqui na região do Bico do Papagaio nesse recorte de tempo citado acima. Não existem documentos que comprovem ao certo quando se deu a chegada dos primeiros moradores nesse dito assentamento mais as informações que adquirimos nos relatos dos primeiros moradores é que isso se deu no início da década de 1970.

Esta pesquisa foi realizada basicamente por relatos dos moradores que ainda estão vivos para contar como eles viram os fatos se desenvolverem. Desta forma, procurarei unir as informações dos primeiros moradores desta localidade, somadas a quem impôs resistência a eles, no caso o fazendeiro chamado “Belizário¹” e a importância da igreja católica junto aos camponeses que requeriam – por direito – o seu pedaço de terra para tirar o sustento para si e para suas famílias. Destas três partes nasceu a minha pesquisa e meu objeto de estudo.

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¹ Belizário é o nome do fazendeiro que se dizia ter os títulos de posse das terras da Fazenda Santa Cruz. Com essa argumentação, dizia ser dono também das terras ao fundo dessa fazendo, terras estas que fazem parte hoje do atual Assentamento Santa Cruz.

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DESENVOLVIMENTO

 O Bico do Papagaio² situa-se em uma região muito distante dos grandes centros urbanos, os conflitos agrários existentes aqui nas décadas de 1970 e 1980, ficaram conhecidos em todo o país através da imprensa que ás noticiou, fazendo com que esses ganhassem grandes dimensões e ficassem conhecidos em todo território nacional. Hoje há a necessidade de aprofundar mais as investigações a respeito do que aconteceu no extremo norte do estado de Goiás na época, hoje Tocantins, mais precisamente no município de Esperantina, antes município de São Sebastião do Tocantins, divisa com o município de Araguatins.

A disputa por terras não só acontecia no Assentamento Santa Cruz³, mas em muitos lugares no estado do Pará, no Maranhão e em todo o Brasil. Esses fatos ganharam relevância ainda mais com a Guerrilha do Araguaia e o assassinato do Pe. Josimo, que morava em são Sebastiao – TO, antes Goiás, e foi assassinado em Imperatriz – MA. Alguns autores tentam mostra quais seriam as possíveis causas desses conflitos e perseguições.

Quando? Início da década de 1970. Muitos acontecimentos haviam ocorridos para encorajar as pessoas a irem em busca de um pedaço de terra para trabalharem e sobreviverem, em especial os povos nordestinos, que se dirigiam as terras do Norte em busca de melhor sorte na vida. O que fizeram essas famílias saírem de uma região e se aventurarem em outra? A política do governo federal com a modernização da agricultura, que fez com que muitas famílias saíssem de onde viviam em seus pequenos terrenos de subsistência, pois não tinham condições de competir com empresários, muito menos tinham documentação dessas terras para garantir sua posse; a seca; a quantidade de terras livres para os povos viverem e trabalharem etc.

Um outro fator que levou a essa luta pela terra foi a política do governo federal. Antes do Regime Militar, o Presidente João Goulart havia tentado realizar uma reforma agraria, mas foi obrigado deixar o cargo de presidente por conta dos militares que tomaram o poder e governaram por 21 anos.

Após o Golpe militar de 1964, o primeiro processo de luta pela terra, denominado Encruzilhada do Natalino, ocorreu no Rio Grande do Sul, no município de Ronda Alta. Tendo se iniciado em março de 1981, esse conflito começou a ser solucionado somente em setembro de 1983, quando a CNBB comprou 100 hectares de terra e destinou – os ao assentamento de 207 famílias remanescentes. (FERNANDES, 2007, P. 46 e 47).


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2 A microrregião do Bico do Papagaio é uma das microrregiões do estado brasileiro do Tocantins. Sua população foi estimada em 2015 pelo IBGE em 222.548 habitantes e está dividida em 25 municípios. Possui uma área total de 15.767,856 km². Os 25 Municípios que compõe a Microrregião são: Ananás, Angico, Araguatins, Augustinópolis, Axixá do Tocantins, Buriti, Carrasco Bonito, Darcinópolis, Esperantina, Itaguatins, Luzinópolis, Maurilândia, do Tocantins, Nazaré, Praia Norte, Riachinho, Sampaio, Santa Terezinha do Tocantins, São Bento do Tocantins, São Miguel do Tocantins, São Sebastião do Tocantins, Sítio Novo do Tocantins e Tocantinópolis.

³ Nome dado hoje as terras que pertenciam ao fazendeiro Belizário e foram desapropriadas para a reforma agrária em 1987, dando origem a este assentamento.

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Ou seja, esses movimentos organizados vieram muito depois das chamadas invasões de terras que aconteciam por estas regiões. Esses e muitos outros acontecimentos fizeram com que as pessoas buscassem um pedaço de terra para plantar e colher. Além disso, ainda temos, a entrada da igreja católica e de partidos de esquerda na defesa das famílias que não dispunham de um pedaço de terra.

...com o apoio de líderes de partidos políticos esquerdistas e de alguns líderes do clero. A presença desses dois segmentos sociais (ou entidades) fortemente organizado e com significativo poder de articulação – a igreja, representada pelos religiosos da Teologia da Libertação, e partidos políticos, em especial os de esquerda – contribuiu decisivamente para a formação do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem – terra (MST). No momento da organização do MST, já havia uma interação entre essa parte da igreja (que criou a Comissão Pastoral da Terra – CPT) e vários setores da esquerda no Brasil (FERNANDES, 2007, P. 44).



Esses foram um dos muitos motivos que fizeram com que as pessoas se deslocassem para onde existisse terras “devolutas” da união para trabalharem. Ouvindo relatos das pessoas que se aventuraram por esses lados, fica mais fácil de entender como se deu as primeiras ocupações do Assentamento Santa Cruz, nosso objeto de estudo. Para isso, me baseio na história oral para realizar esta pesquisa, visto que muito pouco se sabe sobre esse assentamento em si. Me deparei então a ouvir as pessoas que participaram desde o início da ocupação do P.A Santa Cruz.


A história oral não é necessariamente um instrumento de mudança; isso depende do espirito com que seja utilizada. Não obstante, a história oral pode certamente ser um meio de transformar tanto conteúdo, quanto a finalidade da história. Pode ser utilizada para alterar o enfoque da própria história e revelar novos campos de investigação; pode derrubar barreiras que existem entre professores e alunos, entre geração, entre instruções educacionais e o mundo exterior; e na produção da história – seja em livros, museus, radio ou cinema – pode devolver as pessoas que fizeram e vivenciaram a história um lugar fundamental, mediante suas próprias palavras (THOMPSON,
2002, p. 22).


São estas fundamentações que sustentaram nossa memória oral. E são tantas as pessoas que participaram desde o início dessa caminhada em prol da posse da terra no nosso objeto de pesquisa. Por onde andamos encontramos informações de pessoas que dizem – Quem conhece bem essa história desde o começo é o fulano. – O fulano de tal também conhece. – Meu pai também sabe do começo da história.


ASSENTAMENTO SANTA CRUZ

As pessoas que ainda vivem no Assentamento Santa Cruz estão bem vivas para contar como tudo aconteceu. Seu Eugênio conta como ficou sabendo destas terras e os motivos que fizeram este e sua família viram se aventurar por aqui.

Lá no Maranhão nos vivia na terra alea, nos era garoto e nós vem de lá pra cá. um vei falou pra papai: - rapaz aí tem terra Nacional aí pra baixo, no Goiás. Chamavam Goiás. Papai perguntou – rapaz aonde é que fica essa terra? – no Goiá. Chamavam Goiás. – E esse Goiás moço onde é que fica? – não é... tem uns rios grandes. Ele falou assim.-Qual é o rio primeiro? – Tem o Tocantins e o Araguaia, e ele fica numa ilha (Eugênio Pereira de Sousa, 65 anos, entrevista realizada 03/06/2015).



As décadas de 1950 e 1960 presenciaram um grande crescimento econômico e social na vida das pessoas. Soma – se a isso a construção de Brasília e a abertura das rodovias federais, facilitaram o acesso a esta região. Com o país vivendo uma nova fase econômica, por que não procurar melhorias nas condições de viver em outro lugar? O lugar era o antigo norte goiano, hoje atual Bico do Papagaio.

Outro fato marcante que ajudou esta região a ficar conhecida nacionalmente e mundialmente foi a Guerrilha do Araguaia. Esse dito Local que seu Eugênio relata na entrevista foi palco de visita dos soldados do exército em busca dos “guerrilheiros” da Guerrilha do Araguaia.


  
O exército atacou simultaneamente os destacamentos A e C. Uns dez dias depois atacou o Destacamento B e também o local da CM. As tropas ficaram na Transamazônica e nas cidades de Xambioá, Marabá, Araguatins, Araguanã, e nos povoados da Palestina, Brejo Grande, São Geraldo, Santa Cruz e outros. Não foi muito grande o número de soldados que entrou na área onde s achava os PAs (Guerrilha do Araguaia, 1996, p. 20, vários autores).



Logo após tomaram conhecimento das terras “devolutas” dessa região, decidiram vir para estas bandas. Vale ressaltar que a família do seu Eugênio já tinha vindo de outro estado, o Piauí. Seu Eugênio conta que antes de chegar no nosso local de pesquisa, fixaram residência primeiro no município do Axixá do Tocantins4, por volta de 1958.

Veja o mapa de alguns dos municípios da Região do Bico do Papagaio. O Assentamento ao qual estamos nos referindo fica noroeste, na divisa dos municípios de Esperantina e Araguatins, as margens do Rio Araguaia.


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4 Axixá do Tocantins é mais um dos municípios do Bico do Papagaio. Este já faz divisa com Araguatins e fica mais ao Norte dos municípios do Bico. Esperantina fica a Noroeste do Bico do Papagaio.
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Por desentendimento entre famílias que haviam acompanhado a família de seu Eugênio, estes tiveram de procurar novas terras para plantar e colher. É aí que estes chegam ao nosso destino.

...nós descemos pra cá em 69. 69 nós saímos ali do Axixá pra cá. Aí quando cheguemo aqui fumo se aboletar aqui. Aí ajuntô gente. [...] pois tu acredita como esses tempos que nos passamos aqui...cheguemos em 69...quando foi em 75 o vagabundo botou nós pra saí daqui tinha 200 habitantes aqui mais nós. Só comercio tinha 16 comerciante aí mais nós. [...] foi o dotor Belizário que expulsou nós. O dotor Belizário que era o fazendeiro né? Ele fez um documento falso dizendo que tinha comprado da prencesa Isabel né, mintino, né. Quando nós levamo no 85, lá foi aprovado que ele não tinha comprado nada, aí vei a historia pra ele se saí daqui. Tiramo, aí nos ajuntemo, tiremo todo mundo aqui. Tinha uns abuletado bem aqui no haviamento nosso, tinha outro na Marina6 e outro no São Francisco7. Tinha 300 homens deles aí, mas nós tiremo tudim, no amado sussego né, cheguemo, conversemo com eles, cumo companheiro cum outro e vocês saí daqui que aqui não pertence a vocês. É melhor vocês sai que nos sabe que vocês também são pais de família, mais aqui não da de vocês tocar esse serviço, porque o direito é nosso, de vocês também, se quiser morar pra trabaiar, tudo bem, mas pa isbravar, pra deixar nós fora, num dá. Aí vei a orde do 8 e eles sairo tudim. (Eugênio Pereira de Sousa, 65 anos, entrevista realizada 03/06/2015).



Veja o que diz outra autora sobre como os fazendeiros faziam para se apoderar das terras. Le Breton fez um importante estudo sobre a pessoa de Pe. Josimo e as lutas das pessoas pela terra na região do Bico do Papagaio.

A grilagem é uma arte antiga no Brasil, e seus praticantes desenvolveram grande repertorio de truques, objetivo é obter escritura, a qualquer preço, uma coisa facilitado pelo fato de ninguém ter uma noção bem clara da situação da terra. A PRIMEIRA divisão do novo mundo foi feita pelo papa em 1494, quando, através do Tratado de Tordesilhas, quando ele riscou uma linha no mapa da américa Sul, toda a terra a oeste para Espanha e toda a terras a leste para Portugal. [...] no contexto de uma titulação de terra tão caótica, o caminho estava aberto para toda e qualquer pessoa inescrupulosa que quisesse enriquecer, juízes, médicos, arquitetos, homens de negócios e autoridades locais, seguiram – se um após o outro na contratação nos serviços de especialistas em falsificação de documentos. Era incrivelmente fácil conseguir certidões em branco nos cartórios de registros de propriedades e preenchida a gosto.
Com um traço de caneta, propriedades podiam ser ampliadas e mapas redesenhados. Documentos podiam ser artificialmente envelhecidos para comprovar uma apropriação mais antiga (Le Breton,2000, p. 55).

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5 Nome dado por alguns moradores dessa região do Bico do Papagaio a cidade de Marabá – PA, anos atrás.

6 Lote vizinho onde seu Eugênio e seus companheiros estavam vivendo.

7 São Francisco era o principal povoado existente naquela época nessa região. Para se ter uma ideia, nem a atual cidade de Esperantina, nem o Povoado Centro do Zé mulato (hoje Vila Tocantins) existiam. Era uma espécie de cidade na época.

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Segundo os entrevistados, o fazendeiro que havia tentado expulsar eles moravam junto deles no Campestre8, e que depois que expulsaram os pistoleiros, ele também se mudou para um outro assentamento vizinho. No relato, as pessoas contam que o fazendeiro chamado Belizário, mesmo aceitando, num primeiro momento a ordem vindo do 8 para deixar os “assentados” em paz, continuou a perturbar e procurar meios para expulsar os colonos dessa localidade. Para isso, seu Bento, outro morador conta que o fazendeiro fez o seguinte:


Ele foi por de tráz e lá fez uma grojeta lá pelo pessoal do 8 e vieram decretado aqui. O doutor Domingo que era o juiz aqui de Tocantinópolis. Não rapaz aqui a terra ai o home ... ele não tem o título definitivo, mas tem título de ocupação. Todo mundo acha que foi uma coisa comprado. Foi comprado ne. Porque nós foi lá, foi 12 homem foi lá. Ele falou – não vocês podem ficar tranquilo, lá é de vocês mesmo. Na mesma hora ele vem decretado aqui dizer que a terra era do homem, que o homem tinha o documento de ocupação. Antigamente num tinha, agora já tem! Aí os menino... tinha uns pessoa que enxergava a vista um pouco, foi oiar tudo novo, documento tudo novo. Ele fez depois daquela vinda que nós tinha ido lá, que ele sobe que a gente tinha ido lá e crio esse documento e levo lá pra eles vê que a terra era dele e tudo bem aí ele vei com aquele h. (Bento Pereira da Silva, 64 anos, entrevista no dia 02/07/2015).

Desta vez o fazendeiro conseguiu expulsar os moradores do Campestre pela 1ª vez. As famílias saíram e muitos se espalharam pelo Pará, outros se fixaram em Araguatins, que fica rio acima, ou seja, se dispersaram em busca de lugar para morar. O ano? 1975. Mesmo assim, alguns chefes de famílias não deixaram de visitar as terras da Santa Cruz, visto que haviam deixado para traz muitas roças de arroz e mandioca.

Uma outra fala de outra pessoa entrevistada reforça bem a fala de seu Bento. Esta outra entrevistada nos conta da seguinte forma:

Vieram tocar fogo nas casas. As casas estavam feitas de novo, era rui de pegar fogo. Aí eles botavam os menino pra jogar querosene pra tocar fogo. Ainda cortaram até um pra obrigar...pra obrigar tocar fogo nas casas do Campestre. Aí os povo tudim das casas deixaram só a muier, aí eles vieram de noite. Aí uns que queria ser corajoso ficou dentro da trincheira aí eles passaram fogo ao redor. Ainda bem que não matou. Aí as casas ficaram só as casas. Ficou dominado só por eles mesmos. Teve gente que foi pro Brejo Grande. Eles fizeram despejo de gente atá pra Itupiranga, Apinajé, São João do Araguaia, Marabá, Porto da Balsa, Araguatins, Palestina. Pra tudo isso foi feito despejo de gente. Quando eles tocaram fogo nas casas, as mulheres saíram, eles pegavam as galinhas levavam pra Sede9 (Nelsilha Ribeiro Rodrigues, 64 anos, entrevistada em 20/10/2015)
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8 Localidade da primeira sede de povoamento do Assentamento Santa Cruz, as margens do Rio Araguaia. Até hoje conta com muitas famílias morando ali. Muitas casas dos assentados foram construídas nessa localidade.
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Realmente as pessoas deste assentamento passaram por muitas dificuldades para poder conseguir o direito definitivo dessas terras. Outro morador entrevistado que fez parte da segunda geração dos moradores que vieram se assentar na Santa Cruz depois que o fazendeiro havia expulsado os moradores na primeira fase da ocupação é o senhor Raimundo Mota, mais conhecido como Raimundo Cambota, que chegou na Santa Cruz por volta de 1986, na época a terra ainda estava sobe um clima de guerra. Este também conta muito bem como se deu a briga entre o fazendeiro Belizário e as famílias que moravam no Campestre.

É  bom que se diga, entre as primeiras famílias que chegaram aqui no início da década de 1970 e as que chegaram em meados da década de 80, muitos fatos marcantes aconteceram. Como foi relado por alguns, muitas famílias foram obrigadas a deixarem o Setor Campestre. Essas famílias que saíram, muitas retornaram no início da década de 80, quando os trabalhos da igreja católica se intensificaram, com esclarecimentos, em reuniões realizadas em muitos povoados. Desta forma, muitas famílias entraram depois disso, mais precisamente em 86,

quando houve a “invasão” por um número muito grande de famílias, fixando moradia em três diferentes locais: Quatro Bocas10, Esquinão11 e Campestre.


Quando ele comprou essa terra aqui, aí ele queria a área todinha aqui...aí mandou demarcar... inclusive o conflito começou purisso, porque o povo naquela época não queria entrar pro pasto, queria entrar pra mata e ele queria a mata aqui porque tinha comprado lá. Aí o conflito começou por isso (Raimundo Pereira da Mota, 49 aos, entrevista realizada em 01/07/2015).


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9 Sede era mais um local onde muitas famílias viviam. Esta localidade chamada Sede no passado, deu lugar a mais um assentamento, muito próximo ao Assentamento Santa Cruz. Este recebeu o nome de Retiro Santa Cruz II, e realmente virou Sede de um assentamento.

10 Núcleo de assentados. Um conjunto de casas populares feitas pelo INCRA para as famílias morarem. Esta fica a 8 Km da TO 201.

11 Núcleo de assentados. Este fica logo depois das Quatro Bocas, também um conjunto de casas semelhantes as anteriores. Conta com um número muito semelhante de famílias. Estes dois setores, mais o Campestre, formam o Assentamento Santa Cruz.
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Mais à frente em outra parte da entrevista ele continua relatando como ocorreu a ocupação destas terras pelo tal fazendeiro Belizário.

Essa terra aqui ela é uma terra “devoluta”, aí esse vei que era o dono dessa fazenda, ele até pobre era, pelo que me contaram, que era o seu “Belizário” aí ele ganhou um dinheiro, eu não sei se foi no garimpo ou se foi em jogo. Eu sei que ele ganhou um dinheiro, aí veio e comprou essa terra. Quando ele comprou essa terra com o dinheiro que ele ganhou lá. Quando ele comprou essa terra, ele foi embora pra Brasília, por lá ele comprou uma patente de general. Quando ele comprou essa terra aqui, aí ele queria a área todinha. Aí mandou demarcar (Raimundo Pereira da Mota, 49 anos, entrevista realizada em 01/07/2015).



Quando os depoentes se referem comprado lá, na verdade estão se referindo à frente da fazenda do fazendeiro Belizário. Esta frente estava localizada na estrada que vinha de Augustinópolis e ia até o povoado do São Francisco¹², na época município de são Sebastião e hoje município de Esperantina, estrada hoje que conhecemos como TO 201.

Outro entrevistado que relata como fazia para fugir do cerco do fazendeiro é seu Raimundo Alves Taveira. Ele nos conta que após a primeira expulsão que os moradores tiveram, onde muitos receberam uma pequena indenização para desapropriar as terras, ele recusou esta indenização e apenas se afastou mais um pouco de onde o fazendeiro dizia que eram suas terras.


Quando ele (o fazendeiro) botou nos pra correr a primeira vez, eu não saí não, não quis esse dinheirinho não, queria mais era ficar na terra. Eu só fastei mais um pouco meu pique, pra desviar da terra que ele dizia que era dele. Ai comecei trabaiar de novo. Fiz um sitio com tudo que era prantação, tinha mais de 100 pes de banana, muita laranja, a coisa mais bonita do mundo. Pois depois de cinco ano o homem não tornou cercar minha terra de novo, disse que tudo ali era dele. Eu que procurasse outro lugar pra viver. Aí eu afastei mais pra cá, que é onde estamo aqui. Até quando o governo entrou e decidiu cortar de vez pra nois (Raimundo Alves Taveira, 74 anos, entrevista realizada em 20/10/2015).

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 ¹² São Francisco é um povoado que fica próximo à cidade de Esperantina. Na época Esperantina não existia.
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Naquela época era tão perigoso tentar conquistar um pedaço de terra que, muitos contam que tentar plantar capim era muito perigoso. Em se falando em conflitos, há de se destacar aqui a questão da disparidade entre o embate dos poderosos que possuíam recursos em busca de seus interesses e aqueles que estavam buscando um espaço para sobrevivência, muitas vezes sozinhos e sem recursos.

  
Naquele tempo a ordem era para não plantar nem capim, era só pra prantar mesmo arroz, feijão, mandioca, milho, essas coisas. Ninguém não falava em plantar capim. Capim quem plantava era os latifundiários. Então foi assim, ai quando eles saiam que nos viemos pra cá, que fizemo as roça, aí nos prantemos milho, mandioca, arroz, fizemo as roça já maior, ai deu sustentação até pro outros. Já no outro ano todo mundo já foi e brocou, já em 1987” (Bento Pereira da Silva, 64 anos, entrevista no dia 02/07/2015).



Nessa época, essas pessoas encontraram um advogado que falasse a seu favor. Era a igreja católica na pessoa do padre Josimo Morais Tavares. Ele era presidente da CPT (Comissão Pastoral da Terra) e junto de outras lideranças religiosas, começaram a tentar intermediar em favor das famílias que lutavam por um pedaço de terra para sobreviver.

  
A CPT surge de fatores combativos da igreja católica e, apoiadas por “paroquias de periferias” das cidades e das comunidades rurais, passou a dar assistência aos camponeses durante o Regime Militar. Inicialmente sua atuação se focalizava mais naquelas lutas do Norte e Centro – Oeste, depois com o acirramento dos conflitos sociais pela terra em todo o país, vai assumindo uma dinâmica social e territorial de dimensão nacional, num sentido de especializar seu campo de orientação e formação dos camponeses evolvidos em áreas de conflitos (SILVA, 2003, p.79).



A Comissão Pastoral da Terra, criada em 1975, tinha o objetivo de apoiar os camponeses em suas lutas. Isso foi o fator fundamental para as pessoas que estavam nessa situação ganhassem suas terras. A Comissão Pastoral da Terra e a igreja até hoje são muito bem vistas nessa região por estas ações. Esse apoio dado pela igreja fica claro na fala dos depoentes. Todos falam muito bem do Pe. Josimo e de suas companheiras freiras que sempre o acompanhavam.

  
Se devemos alguma coisa aqui, esta divida é ao Padre Josimo. Aquele homem veio do céu para no ajudar. Sem aquele homem nos não tinha conseguido essas terra não moço. A igreja católica fez muito por nós. Se não fosse ela não tinha conseguido não. Foi o senhor Jesus cristo que botou Josimo na nossa causa. (Raimundo Alves Taveira,74 anos, entrevista realizada em 20/10/2015).


É  fato comprovado a participação da igreja católica a esta causa. O envolvimento desta foi de tão importância para as pessoas da região do Bico do Papagaio que levou a morte de Josimo Morais Tavares, fruto do ódio que este despertava nos grandes latifundiários.


Ao abraçar as causas dos trabalhadores rurais, ele se tornou um símbolo de resistência e um foco de esperança. Quando as pessoas eram expulsas e espancadas, tinham suas casas queimadas e suas roupas roubadas o Padre Josimo fazia? Ele os encorajava a voltar a terra, a resistir a todo preço e não se desesperar. Era um espirito livre, uma torre forte, mais para os fazendeiros era insuportável (LE BRETON, 2000,
p.111).



De tanto lutar ao lado dos camponeses, Padre Josimo despertou o ódio dos fazendeiros que tinham terras nessa região. Esse ódio o tirou a vida no dia 10 de maio de 1986. Sua morte chamou a tenção das autoridades de todo o pais, fazendo com que muitos assentamentos que estavam em conflitos agrários fossem passados definitivo para as pessoas envolvidas. Foi o caso do nosso Assentamento Santa Cruz, que tão logo os seus moradores viriam a ganhar os direitos de posse de suas propriedades.

Um outro legado das lutas travadas pela igreja foi a criação dos Sindicatos dos Trabalhadores Rurais. A partir desses sindicatos, as pessoas puderam se unir para ganhar força contra os fazendeiros e até mesmo contra o governo. Este documento, encontrada na sede do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Esperantina, mostra a documento assinado pelo ministro do Trabalho, criando o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de São Sebastiao do Tocantins, estado de Goiás em 1982. São Sebastiao porque na época não existia o município de Esperantina. Este mesmo sindicato foi transferido para Vila Tocantins, Esperantina – TO, quando esta ganha sua emancipação.



Com a criação deste sindicato nesta data, as coisas começaram a mudar na vida de muitas famílias camponesas. Esse sindicato, junto a mobilização da igreja – nas pessoas Nicola, Pe. Josimo e as freiras Mada e Bia – teve papel fundamental para a desapropriação ou reconhecimento pelo INCRA, por volta de 1987 da então Fazenda Santa Cruz, Para Assentamento Santa Cruz. Com o passar dos anos, não somente este assentamento, mas muitos outros conseguiram ser legalizados.

Um depoimento importante que mostra bem esse início de final feliz é a entrevista com José Felipe. Esta conta mais detalhes da época em que as coisas ficaram mais calmas para os “posseiros”. Zé Felipe, como é conhecido, relata que após as primeiras lutas vividas pelas primeiras pessoas que se aventuraram por essas terras – seu Eugênio, Nelsita, Raimundo Taveira, entre outros – no início da década de 1970, as coisas se acalmaram em meados da década de 1980, quando foram criados os Sindicados e as Associações. Esta conta que entrou para as terras da Santa Cruz em 1986. Ele cita 86 porque foi a época que a igreja, os sindicatos e as associações, após os muitos casos de mortes e agressões nessa região, noticiados na imprensa nacional, somados a morte de Pe. Josimo, começam a vencer a batalha contra os fazendeiros em prol das famílias sem – terra.

Eu entrei em agosto de 1986. O pessoal já tinha entrada já. Aí houve esse processo de desapropriação, aí ficou naquele balanço né? Vai desapropriar não vai? Porque o sindicato, as organização, o INCRA entra com esse processo de desapropriação. Mas aí sempre tem aquela brecha pro fazendeiro recorrer né, que pode. Aí levou esse tempão todim! Isso em 86. Quando foi em 89... certo quando o INCRA veio reconhecer foi em 1989. 89 foi que o INCRA veio reconhecer. Houve primeiro uma demarcação, aí botaram poste de madeira, mas também não valeu ainda... Mas depois veio o outro mesmo certo né, que foi a desapropriação, que foi enfiado o de cimento13. E aí foi assim essa grande luta de lá pra cá. O primeiro documento que eu tenho, já foi questão do que veio pra dentro depois da parcela, que foi reconhecido pelo INCRA, que foi um... uma carta de anuência, que foi o primeiro dinheiro que entrou, que hoje eles chamam como fomento (José Felipe de oliveira Filho, 63 anos. Entrevista realizado em 07/01/2016).



Esse foi realmente o primeiro documento dado pelo INCRA. Este documento mostra que a partir daquele momento, o assentamento Santa Cruz estava legalizado. Os batalhadores haviam vencido. Uns lutando mais do que outros, mas haviam vencido a luta. Veja abaixo uma imagem deste documento:



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13 Pequenos postes de cimento que o INCRA usa enfiado no chão para limitar a divisa de um lote a outro.
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Depois desta data a justiça havia dado ganho de causa definitiva para as famílias merecedoras. José Felipe ocupou a presidência da Associação do Assentamento Santa Cruz por 6 anos, de 2005 a 2011. Este mesmo assentamento conta com 112 famílias assentadas.


CONSIDERAÇÕES FINAIS


Foram muitas os obstáculos das famílias para vencer essa luta contra o fazendeiro que queria cercar estas terras do Assentamento Santa Cruz. Nessas lutas travadas muitos sem-terra perderiam a vida defendendo um pedaço de terra para sua família. Como vimos por parte dos relatos das pessoas que viram tudo acontecer, muitos deles foram obrigados a saí ou morriam. Muitos saiam mais encontravam apoio na igreja católica, na pessoa do Pe. Josimo, na comissão Pastoral da Terra e de muitas freiras que estavam sempre prontas a enfrentar essa luta junto com eles. Nessas lutas que estavam sendo travadas, muitos anos foram se passando, desde a chegada dos primeiros moradores no final da década de 60 até meados da década de 80 do século passado. Foram anos e anos de resistência, onde pouco a pouco os direitos vinham sendo conquistados.

Este assentamento foi o primeiro do Bico do Papagaio a ter a sua situação legalizada. Este mesmo assentamento beneficia 112 famílias. Depois deste vieram muitos outros. Hoje a região conta com uma infinidade de assentamentos, nessa região, beneficiando muitas famílias que antes não tinham um pedaço de terra para trabalharem.

Este fazendeiro que muito aparece no artigo, “Belizário”, em conversas com os depoentes, não encontrei nada mais desse homem, a não ser o que os assentados me contaram. Falam que ele morreu por volta de 1985. Sua esposa cansada de tantas “brigas e fuxicos”, não pensou duas vezes, vendeu a terra para um tal de “Tonim”, um aventureiro que já sabia que o governo tinha intensão de comprar pra fins de reforma agraria, então tentou ganhar um bom dinheiro do governo vendendo bem mais caro.

O saldo que ficou foi o prazer de terem lutado e conseguido. Mas para isso muitos não tiveram a coragem de ficar até o fim, na queima de casas do Campestre, muitos foram embora e não voltaram mais. Um padre morto, por conta deste e de outros conflitos, em defesa da posse da terra. Fica também a lição de que para conseguir as coisas nada é fácil. Hoje o assentamento está consolidado. Muitas famílias desfrutam de um pedaço de terra para trabalhar e viver com mais dignidade. Muitos não conhecem nem a metade do processo de titularização destes lotes.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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